2.5.07

Até quando os padres casados estarão à margem do caminho?

Seções — Reportagem
Ed. Ultimato
Até quando os padres casados estarão à margem do caminho?
O drama da vocação
Alguns foram presenteados por seus pais ao Senhor por serem a primeira descendência, como se fazia em Israel depois do êxodo (Êx 13.11-13) — era um privilégio ter um filho padre. Outros eram atraídos ao ministério por decisão própria, encantados com a riqueza do cristianismo ou ao tomar conhecimento da vida abnegada dos santos. Há também aqueles que abraçaram a carreira eclesiástica em meio a sério perigo de vida ou em gratidão a Deus por tê-los livrado da morte, como aconteceu com os dois contemporâneos Lutero e Loyola. Em alguns casos, a vocação brotou como resultado natural do alto nível de espiritualidade do jovem. Há ainda aqueles que conseguiram enxergar o sofrimento humano e, condoídos, abraçaram a vida consagrada para se dedicarem com amor aos cansados e sobrecarregados de dor.

Para alcançar o sacerdócio, esses vocacionados deixaram pai e mãe e foram para os então chamados seminários seculares menores e maiores ou para clausuras dos padres regulares. Entre outras disciplinas, estudaram filosofia e teologia, duas ciências irmãs. Passaram a adolescência e a juventude trancados nesses seminários, preparando-se para o celibato e para o sacerdócio, quase sem convívio com mulheres. Tornaram-se fluentes em latim, a língua oficial da Igreja Católica Romana. Aprenderam a difícil arte de fechar o coração ao amor conjugal. Por fim, foram ordenados diáconos e, depois, presbíteros. Celebraram então, com grande emoção, a primeira missa e deram início à vida ministerial, sob a supervisão do bispo da diocese ou do superior de sua congregação religiosa.

O drama do celibato
Com muita negação própria, oração e penitência e, na maioria dos casos, com muita dificuldade e tentação, os novos padres conseguiram manter os votos do celibato. Para uns, foi mais fácil; para outros, bem mais difícil. Muitos se perguntavam se o celibato clerical vitalício era mesmo uma necessidade imposta pelo ofício e se a Igreja devia mesmo exigir tal obrigação.

De repente, apareceu uma Maria do Socorro, uma Regina, uma Raimunda, uma Alexandrina, uma Irene e tantas outras. Eram moças sérias, católicas praticantes, secretárias paroquiais, auxiliares do senhor vigário, freiras, e não mulheres frívolas, tampouco instrumentos de perdição enviados, quem sabe, da parte do demônio para destruir uma vocação. Depois de certa relutância, o padre Carlos Almeida casou-se com Maria do Socorro; o padre José Ribeiro, com Regina; o padre Petrus Jacobus, com Raimunda;* o padre Everaldo Peixoto, com Alexandrina; e o padre Luís Guerreiro, com Irene.

Alguns encaminharam a Roma o pedido de dispensa do voto do celibato, que, no passado recente, poderia demorar anos, e então se casaram. A maior parte casou-se só no civil e deixou a cerimônia religiosa para quando a dispensa chegasse. Outros deixaram a dispensa de lado e se casaram — nem sempre tranqüilamente. O fato é que, com a dispensa ou sem ela, o padre que se casa não deixa de ser padre (se não abandona a fé católica), mas não pode exercer o sacerdócio. Passa a ser chamado de padre casado e não de ex-padre. Já se algum colega de batina se relaciona com uma mulher, mas continua solteiro (quebra o voto de castidade, mais importante, e não o voto de celibato), ele também continua padre, porém, não perde o direito de exercer o sacerdócio, embora possa sofrer alguma punição ou ser transferido para outra diocese.

O drama da marginalização
O padre casado está à margem do caminho até a morte ou até que haja alguma mudança significativa da parte do Vaticano, o que tem sido historicamente improvável. De acordo com a boa vontade do bispo diocesano ou pároco, o padre casado pode receber alguma incumbência — fazer palestras, trabalhar com jovens, realizar obras sociais etc. O padre casado Felisberto Almeida, de 75 anos, professor aposentado residente em Brasília e pai de dois rapazes, diz que, no relacionamento com padres casados há três tipos de bispos: os que são amigos e até os têm como colaboradores, os que mantêm apenas relações protocolares de civilidade e os que não se pronunciam publicamente contra, mas praticam a exclusão.

Felisberto Almeida, ex-presidente da Associação Rumos, que congrega os padres casados do Brasil, considera o recém-falecido Dom Luciano Mendes de Almeida como um exemplo admirável de bispo amigo desse grande grupo de padres marginalizados por terem se casado. Graças à intervenção de Dom Luciano, dezenas de padres casados receberam a demorada dispensa de Roma. Um deles estava em estado grave no leito de um hospital em Belém do Pará quando chegou a dispensa e, em seguida, ali mesmo, casou-se religiosamente com a esposa. O alívio emocional foi tão grande que ele começou a melhorar, voltou para casa e vive até hoje.

Alguns padres casados ganharam aversão à igreja, outros perderam a fé. Este é o caso do sociólogo e escritor Eugênio Pedro Giovenardi, de 72 anos, pai de uma filha, residente em Brasília, como se poder ler na edição de
novembro/dezembro de 2003 de Ultimato. A maior parte, porém, tenta controlar a situação e mantém boas relações com a Igreja. Por exemplo, o padre casado José Vicente de Andrade, um jornalista de 70 anos, residente em Belo Horizonte, pai de dois filhos, escreveu: "Sou da opinião que nenhum padre casado deve brigar com a Igreja nem [...] associar-se a comunidades de outras vertentes para exercerem profissionalmente a partilha da Palavra, do perdão e do pão, participando do poder episcopal talvez suspeito ou duvidoso" (Ciência e Cultura, dezembro de 2006, p. 2). O padre casado e juiz José Ribeiro Leitão, morto aos 78 anos (51 anos depois de ser ordenado), é um exemplo. Quando era vigário em Tocantins, na Zona da Mata de Minas Gerais, José Ribeiro deixou o ministério aos 36 anos e se casou com Regina Coeli, com a qual teve Rodrigo, Raíssa e Rômulo, todos residentes em Brasília. Ele sempre foi amigo e colaborador de Dom Delfim Ribeiro Guedes, por 23 anos bispo da Diocese de São João Del Rei.

O drama da igreja romana
Segundo o Anuário Pontifício de 2005, em 1978 havia um padre para 1.800 católicos. Passados quase 30 anos, hoje há um padre para 2.700 fiéis. Enquanto o número de católicos aumentava 40% durante o pontificado de João Paulo II, o número de padres diminuía 4%. De acordo com a Congregação Vaticana para o Clero, cerca de mil padres deixam anualmente o ministério. Alguns acabam voltando. Entre 1970 e 1995, quase dez mil daqueles que abandonaram a batina voltaram, após um processo rigoroso, caso por caso.

No Brasil, deve haver uns 4 mil padres casados. Nos Estados Unidos o número pode ser quase quatro vezes maior (15 mil). No Canadá seriam uns 5 mil.

É uma ingenuidade pensar que os padres casados da Igreja Católica brasileira sejam todos brasileiros. Muitos missionários católicos vieram para o Brasil e aqui se casaram. É o caso do alemão Henrique Swillens (84 anos), do americano Donald Eugene Gall (72), do belga Eduard Hoornaert (76), do canadense Joseph Alphonse Gilles Lacroix (72), do francês Jean Bauzin (80), do holandês Petrus Jacobus Schaeken (80), do irlandês Michael McLaughlin (66), do italiano Fernando Spagnolo (64), do polonês Leon Pakula (51) e do português João Correia Tavares (66).

Em setembro de 2006, um padre casado comemorou de forma inusitada o 40º aniversário de sua ordenação. Ele convidou cinco pastores de diferentes denominações evangélicas (presbiteriana, luterana, anglicana, congregacional e Exército de Salvação) para irem a sua casa e pediu a cada um deles para contar como aconteceu o seu chamado para o ministério e o que significa ser pastor hoje. Depois, tomaram uma taça de vinho e serviram-se de salgadinhos. Os pastores lhe deram de presente uma estola e o livro Ecumenismo no Caminho, do sacerdote católico Hans Küng. Esse padre se casou 14 anos depois de sua ordenação, aos 40. Além do trabalho secular como tradutor e intérprete, ele ministra cursos para noivos em preparação para o casamento. O casal tem duas filhas.

Outro padre casado, Everaldo Peixoto de Vasconcelos, 80 anos, residente em João Pessoa, PB, em carta ao jornal Ciência e Cultura, exulta: "Apesar da idade, tenho a graça de Deus de ainda continuar em atividade, trabalhando como psicólogo familiar e coordenador de extensão da UNIPE, com palestras constantes e diversas para as quais sou solicitado. É o meu ministério até o dia da minha ressurreição!".

O drama da revogação do celibato
O papa Bento XVI, em entrevista a uma revista católica, declarou: "Nós temos uma idéia positiva a propor: o homem e a mulher foram feitos um para o outro, formam uma família, que é a garantia da continuidade. Isso não é uma invenção católica. Todas as culturas, no fundo, sabem disso" (Istoé, 20/09/2006, p. 82).

Essa natural dependência mútua está nas Escrituras: "Lembrem-se [...] que no plano de Deus o homem e a mulher precisam um do outro" (1 Co 11.11, BV). Na tradução elaborada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) está assim: "Diante do Senhor, como a mulher depende do homem, assim também o homem depende da mulher". Na Bíblia do Peregrino (Editora Paulus), a linguagem chega a ser meio rude. Lá se diz que para o Senhor não há "mulher sem homem nem homem sem mulher".
Ora, se o apóstolo Paulo e o Papa Bento XVI estão em perfeita sintonia quanto a esse assunto, por que separar obrigatoriamente o homem da mulher, quando ele decide ser padre? Isto, sim, é uma lamentável invenção da Igreja Católica Romana (de rito latino), que já dura mais de oito séculos.

Porventura haverá alguma surpresa pela frente no que diz respeito ao celibato clerical? A nomeação do cardeal brasileiro Dom Cláudio Hummes como pastor dos pastores no mundo católico tem algo a ver com a questão? Segundo Dom Lorenzo Baldisseri, núncio apostólico do Brasil, a escolha do ex-arcebispo de São Paulo como prefeito da congregação para o clero deve-se ao fato de que "a Igreja [Católica] vê a América Latina como o 'continente da esperança', porque metade dos católicos do mundo reside nesta região" (Folha de São Paulo, 26/11/2006, p. A-16).

Se houver uma revogação completa ou progressiva do celibato, certamente muitos padres se casarão e não mais estarão à margem do caminho. E os outros continuarão celibatários por decisão própria e capacidade especial dada por Deus. Mas, quanto aos padres casados, não se sabe quantos estariam dispostos a voltar a exercer o sacerdócio.

O problema que poderá, então, surgir é o despreparo vocacional das esposas de padres. E a questão não é de somenos importância. Quem sabe a CNBB abriria escolas para orientar essas mulheres a caminhar lado a lado com o marido padre? Uma escola assim faz falta também no meio evangélico, embora muitos pastores se casem com jovens formadas em educação cristã, música sacra e missões. Quanto mais bem casados, padres e pastores serão mais bem-sucedidos.
 

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